Violência nutricional: quando o cuidado vira opressão
- Dra. Danielle Fava
- 3 de jun.
- 4 min de leitura
Nos atendimentos em saúde, especialmente quando há um diagnóstico de doença crônica, é comum que a escuta se perca, que a cultura alimentar seja desvalorizada e nossos corpos da mulher virem alvo de julgamento. E é aí que o cuidado, que deveria acolher, começa a machucar.

Quando uma mulher chega a um serviço de saúde, ela tem uma queixa. Mas, para além disso, ela chega com medo, dor invisíveis, cansaço e muitas outras demandas. Mas ao invés de ser acolhidas com respeito, ela é recebidas com exigências: perder peso, cortar alimentos, mudar o corpo. Pouco se fala de como a rotina pesa, de como o acesso à comida é desigual, de como a cultura alimentar foi rompida ao longo dos anos.
Em clínicas e hospitais, principalmente nos casos de doenças crônicas, é comum que o atendimento foque exclusivamente em números: glicemia, colesterol, peso, IMC, restrições. Mas por trás de cada resultado clínico, há uma história de vida, uma realidade alimentar, um corpo com experiências e afetos.
Essas violências acontecem com todas as mulheres. Porém, é muito mais frequente com mulheres negras e periféricas, que carregam outras realidades nos ombros e que ainda são responsabilizadas pela própria saúde como se tudo dependesse apenas de “força de vontade”.
Tenho certeza que muitas de vocês nunca perceberam como essas pequenas violências ocorrem durante os atendimentos em saúde. Mas, vou citar exemplos que vão fazer vocês perceberem que já passaram por muitos deles em suas vidas:
Você ja recebeu de um profissional uma "dieta de gaveta", aquela dieta padronizada, que ele entrega para todo mundo, que não cabia na sua rotina de mãe solo, de mulher que trabalha o dia inteiro ou de quem vive em regiões onde frutas e legumes são caros?
Você já foi em um profissional que te falou: “você precisa se esforçar mais”, “isso é falta de disciplina”, “tem que querer mudar”?
Você já esteve em uma consulta onde sentiu que não foi escutada, quando o profissional não pergunta como você se sente em relação à comida, ao seu corpo, às mudanças que foram indicadas?
Algum profissional já desprezou os saberes da sua família? Ou rotulou comidas feitas com carinho pela sua avó ou sua mãe como “erradas”, sem entender seu valor afetivo e ancestral?
Se você passou por algumas dessa situações, esse profissional provavelmente não considera que a alimentação é mais do que a soma de nutrientes: ela é cultura, memória, afeto, cuidado e identidade. É por isso que, em muitos contextos, especialmente nos atendimentos em saúde, ela se transforma em território de controle, julgamento e opressão. É nesse cenário que a violência nutricional aparece, uma forma silenciosa de violar direitos e perpetuar desigualdades.
Violência nutricional é toda forma de ação, omissão ou imposição que desrespeita os direitos alimentares e nutricionais de um indivíduo ou grupo, gerando sofrimento físico, psicológico, social ou simbólico. Ela se manifesta de forma explícita ou velada, e costuma ser naturalizada nos discursos médicos, nutricionais e institucionais.
Ela ocorre, por exemplo, quando uma pessoa é forçada a seguir uma dieta padrão sem escuta de sua história, cultura ou condição social, quando uma pessoa é julgada pelo seu corpo, por suas escolhas alimentares ou por sua forma de viver a comida, quando ela é culpabilizada por estar com acima ou abaixo de seu peso ou a apresentar uma doença crônica ou ainda quando ela é privada de se alimentar com afeto, prazer e dignidade.
A intersecção entre raça, classe e gênero torna a violência nutricional ainda mais cruel. Mulheres negras, por exemplo, têm seus corpos constantemente vigiados e deslegitimados: são vistas como “fortes”, “resistentes” ou “desleixadas”, o que resulta em uma menor escuta e menor cuidado. Além disso, suas práticas alimentares são frequentemente tidas como “exóticas”, “erradas” ou “pouco saudáveis”, invisibilizando a potência das cozinhas afro-indígenas, silenciando não apenas um ou outro alimento, mas uma cultura inteira.
Dessa forma, nos serviços de saúde, a violência nutricional aparece por meio de prescrição de dietas descontextualizadas, pela desvalorização de saberes tradicionais, por discursos moralizantes que ignoram o impacto ode determinantes sociais da saúde e pela falta de escuta.
Diante disso, é urgente que profissionais de saúde - especialmente nutricionistas, médicas (os), enfermeiras (os), psicólogas (os), médicas/os, enfermeiras/os e psicólogas/os - passem a enxergar a nutrição de forma diferente. Isso significa:
Escutar o paciente com empatia, reconhecendo seus atravessamentos;
Prescrever de forma realista e respeitosa, considerando o contexto socioeconômico e cultural;
Valorizar a comida ancestral e tradicional, não apenas como saudável, mas como elemento de cura e identidade;
Desmedicalizar a comida, devolvendo a ela o direito ao prazer, à festa e à memória.
As consultas devem ser espaços de escuta, acolhimento e construção conjunta de caminhos possíveis e a educação deve incluir discussões sobre racismo estrutural, determinantes sociais da saúde e soberania alimentar para que possamos construir uma saúde que respeita corpos diversos, celebra as raízes alimentares e cuida sem julgar.
“Enquanto nos dizem o que comer, esquecem de perguntar o que nos alimenta.”
Você já viveu alguma experiência em que sentiu sua alimentação ou seu corpo sendo julgados em um atendimento de saúde?
Compartilhe sua história nos comentários ou envie uma mensagem para juntas construirmos espaços de cuidado com mais escuta e respeito.
Do meu tempo pro seu tempo, com ternura.
Dra. Danielle Fava
Nutricionista
CRN3 26112
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